São Pedro é inocente

Especialista diz que a seca não foi tão forte e que o racionamento de energia é culpa exclusiva da falta de planejamento do governo

O professor Ildo Sauer, do Departamento de Eletrotécnica da Universidade de São Paulo, tem lugar garantido no céu. E por uma razão simples: enquanto o governo e alguns empresários do setor elétrico blasfemam ao culpar SãoPedro, que teria enviado menos chuvas nos últimos anos, pelo inevitável racionamento, Sauer exibe dados inocentando a santidade. Nesta entrevista a Sérgio Lírio, o acadêmico, um dos mais respeitados especialistas em energia do País, afirma que o único responsável pelo caos é o próprio governo, que abandonou o planejamento estratégico e se eximiu de fazer os investimentos necessários para garantir o abastecimento à população. "Essa crise não é só anunciada, como, de uma certa maneira, programada e planejada", afirma Sauer.

CARTACAPITAL: O governo diz que a causa do racionamento iminente é a seca dos últimos anos. Dá para culpar a hidrologia?

ILDO SAUER: Definitivamente, a situação atual não é culpa de São Pedro. Mais do que chuva, faltou política e ação na área de energia no Brasil na última década. De abril de 2000 a março deste ano, as chuvas ficaram 12% abaixo da média histórica. No mesmo período anterior, elas foram 5% menores.

CC: Mas então choveu menos nesse período?

IS: Choveu, mas essas oscilações seriam perfeitamente gerenciáveis caso a operação do sistema hidráulico fosse feita de acordo com os fundamentos para os quais ele foi projetado. A verdade é que a falta de investimentos em geração e transmissão é a causa da crise atual. De 1994 para cá, sistematicamente, ano após ano, retiramos dos reservatórios das usinas mais água do que entrou com as chuvas. O sistema é planejado para que, em condições normais, os reservatórios cheguem praticamente cheios ao final do período de chuvas. Na Região Sudeste, cujos reservatórios são os mais importantes do País, até 1993, eles oscilavam entre 90% e 98% da capacidade. Em 2001, neste fim de chuvas, estão abaixo de 34%. Isso aconteceu porque, entre 1991 e 2001, a taxa de crescimento do consumo foi de 4,1%, ao ano. A da oferta cresceu 3,3% ao ano, em média, gerando uma defasagem acumulada superior a 10% na década.

CC: Outro argumento do governo é que a estabilidade do Plano Real fez o consumo de energia disparar

IS: Isso também não aconteceu. O consumo não cresceu acima do esperado. Historicamente, países em desenvolvimento como o Brasil apresentam crescimento da demanda de energia acima da variação do Produto Interno Bruto, seja ela expressiva ou não. A razão é que essas nações precisam criar infraestrutura e suprir carências. Numa comparação com a média histórica, no entanto, vêse que o crescimento do consumo nos últimos dez anos foi menor. O problema que vivemos, repito, está na política ou na ausência dela. Quando começou a privatizar, o governo inibiu investimentos das estatais do setor que tinham capacidade de aumentar a oferta de energia. Negoulhes, inclusive, acesso a financiamentos do BNDES, disponibilizado, porém, a grupos estrangeiros. Esperavase que a iniciativa privada cuidasse de tudo. Mas ela não apareceu, reclamando por regras mais claras, mais garantias e privilégios no repasse de riscos aos consumidores, especialmente quando o governo sinalizou com a venda das usinas já existentes, com financiamento a preços inferiores aos custos dos novos projetos.

CC: Esta é uma crise anunciada?

IS: Ela não é só anunciada, como, de uma certa maneira, programada e planejada. O que vivemos hoje é fruto de um modelo, de políticas equivocadas, em alguns casos, e da ausência delas, em outros. E digo mais: só não enfrentamos o racionamento no ano passado porque choveu inesperadamente nos meses de setembro e outubro. Essa ajuda da natureza salvou o Brasil do caos.

CC: O que o consumidor pode esperar nos próximos anos em relação ao preço e à oferta de energia?

IS: O pior. Dificilmente sairemos do quadro de escassez num prazo curto. Temos no horizonte um quadro crítico que não deve se resolver ao final do período de secas deste ano. Há uma grande probabilidade de que se propague por 2002, até porque a recuperação do nível dos reservatórios é uma operação complexa. Qualquer usina termoelétrica, dessas que estão sendo propostas, tem prazo de
maturação que, em geral, supera um ano. As medidas de integração e transmissão de energia do Sul do Brasil, da Argentina e do Paraguai, que nos possibilitariam importar, também vão demorar. A saída está na possibilidade de, por exemplo, se mobilizar toda a capacidade existente hoje de reserva. Muitos empreendimentos e instalações, bancos, shopping centers, hospitais, indústrias, têm geradores próprios, capacidade de produzir para ser usada em situações de emergência. Não vi até agora nenhum movimento para mobilizar essa capacidade, criar as normas técnicas e os procedimentos necessários para que eles possam ser sincronizados com a rede.

CC: E os preços?

IS: Eles já estão subindo. De 1995 para cá, as tarifas residenciais subiram 67% acima da inflação medida pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, da USP (Fipe). Nos setores comerciais e industriais, esse aumento real ficou em 20%. O Brasil está passando por dois processos simultâneos. Hoje, o preço da geração, tomado por uma média histórica, está em torno de R$ 35 por megawatthora. Isso é resultado do seguinte: pelo sistema tarifário vigente até recentemente, as empresas que produziam energia elétrica só podiam repassar aos consumidores, portanto, ao setor produtivo e à demanda final, o custo médio da geração. Dividiamse os custos de toda a produção de energia pela energia produzida e esse é o custo médio. De uma certa forma, essa vantagem comparativa, de um sistema baseado em recurso hidráulico gerenciado do ponto de vista contábil para que beneficiasse o setor
produtivo e a demanda final, fez com que de fato a energia no Brasil tivesse custos relativamente baixos. Um dos pilares da reforma do setor energético é a criação do mercado competitivo. Ironicamente, neste caso, o discurso diz que se busca a competitividade para aumentar a eficiência e diminuir os preços. Na verdade, neste caso, o chamado mercado competitivo, que é um dos pilares do novo modelo, vai se traduzir em custos muito mais elevados para o consumidor.

CC: Por quê?

IS: Porque, no modelo competitivo, toda a energia acaba sendo vendida pelo custo marginal, que é o custo da nova energia, isto é, das novas usinas que estão sendo construídas agora. Com a entrada das usinas térmicas do programa prioritário do governo federal, com base no gás natural, teremos custos próximos de R$ 90 por megawatthora.

CC : Qual será o impacto econômico desse aumento? 

IS: Para algumas empresas, talvez insuportável. A tendência é que a tarifa do setor industrial, hoje em torno de R$ 45 o megawatthora, dobre a partir de 2006. Para os consumidores que recebem em baixatensão, que já tiveram o impacto com o aumento da distribuição, esperase um reajuste médio da ordem de 30%, além dos aumentos já programados para compensar as distribuidoras. Fazem parte desse grupo residências, comércio e a pequena indústria.
Isto representa, em princípio, transferência de renda do setor produtivo e dos consumidores residenciais para os novos investidores do setor elétrico. Além disso, muitas indústrias podem se tornar inviáveis. Elas perderão mercados e competitividade. O resultado será menos crescimento da economia e menos empregos. Num ambiente de restrição de oferta, a implantação de um mercado competitivo constitui um crime contra os consumidores cativos, que acabarão pagando o preço da especulação.

CC: A história do setor elétrico estatal é recheada de manipulações políticas, obras atrasadas e superfaturadas, megalomania. Por que seria melhor manter os investimentos e a gestão das companhias nas mãos do Estado em vez de transferir tudo para o setor privado?

IS: Há uma profunda ironia e um paradoxo nas promessas dos reformadores. Eles afirmavam que reformar o setor elétrico iria garantir melhor qualidade, expansão do sistema, eficiência e preços mais baixos. Em um balanço rápido, não é o que aconteceu. Não há avaliação confiável sobre a qualidade. Mas, a olhos nus, não dá para afirmar que os serviços melhoraram ­ e digo isso sem avaliar as crises pontuais que aconteceram no Rio de Janeiro e no Ceará, por exemplo. Os custos não diminuíram. Ao contrário, estão aumentando e há uma tendência de subir muito mais. Estamos na iminência de um brutal desabastecimento, jamais imaginado há dez anos. A única conclusão possível é que o modelo fracassou. E apesar das ingerências políticas e dos interesses corporativos, dos processos notórios de corrupção, de sobrecustos e sobrepreços em licitações fraudadas, o modelo anterior produziu para a
sociedade resultados mais eficazes. Ofertou energia suficiente a preços baixos. Ninguém em sã consciência nega que o modelo anterior precisava de reformas profundas. A questão é que o caminho adotado hoje não consegue corrigir as falhas do sistema anterior. O governo deveria congelar a implementação do modelo, concentrar forças e recursos, especialmente das estatais como Furnas, Chesf, Eletronorte, Cemig, Copel e Cesp, para sair da crise, e depois repensálo profundamente.

CC: Afinal, quem ganha com as privatizações e a abertura do mercado?

IS: Os grupos internacionais. Um balanço das privatizações indica que os consumidores estão perdendo, porque as tarifas já aumentaram muito e vão aumentar ainda mais. Os trabalhadores do setor elétrico tiveram sua força de trabalho reduzida a menos da metade com programas de terceirização e salários menores. Sem que esse ganho de produtividade, digase, fosse repassado para os consumidores A indústria tende a perder sua competitividade sistêmica. De outro lado, a participação da empresa nacional na fabricação de equipamentos e do setor de engenharia na produção dos serviços necessários para usinas, além de todo o aparato relacionado com o desenvolvimento do setor elétrico, vem sendo reduzida. De forma que um balanço indica claramente que quem está ganhando são os investidores e quem está perdendo é o conjunto da sociedade brasileira.

CC: Só os grupos internacionais ganham?

IS: Ganham também seus associados no Brasil. Os pioneiros das décadas de 40, 50 e 60, que conceberam e desenvolveram o recurso energético no Brasil, com ênfase no setor hidráulico, o fizeram com uma visão de política pública que buscava beneficiar a sociedade como um todo. Os herdeiros desses pioneiros, que teriam por missão levar adiante e aprofundar esse projeto, reformandoo onde fosse necessário para redirecionálo e removendo suas mazelas, na verdade tiveram um papel profundamente pernicioso para a sociedade. Simplesmente, segmentos importantes da tecnocracia resolveram se aliar aos investidores internacionais para se beneficiar dessa nova situação. Se, antes, podiase acusar as corporações do setor elétrico de ter privilégios relativamente significativos quando comparados com os salários e benefícios dos demais trabalhadores, hoje essa situação é profundamente mais
vexatória, porque grande parte desses mesmos técnicos de ponta, muitos dos quais se aposentaram no setor elétrico, preparou o modelo da privatização e da reestruturação, e depois foi se aliar aos compradores, recebendo salários extremamente elevados, decuplicados, quintuplicados. Essa nova classe, em geral, é aquela que, mais do que competência técnica, na verdade está vendendo o tráfico de simpatia e de influência junto àqueles que ainda continuam no poder e nos órgãos controladores do setor elétrico, que foram seus associados na produção do novo modelo.